23.5.12

A loira, o negro, os cães e a caravana

Foto: reprodução publicada no site PortalImprensa

Não conheço essa moça, Mirella Cunha. Nunca a vi atuando, a não ser em duas "entrevistas" através de vídeos no YouTube, ambas para o programa Brasil Urgente, para o qual trabalha (ou trabalhava), na Band-BA. Uma, com os gêmeos da cidade de Mossoró que subtrairam dinheiro da família para passear em Salvador. A outra, a famigerada entrevista da concórdia. Sim, concórdia, porque parece uníssona a crucificação da entrevistadora, que violou os direitos constitucionais de um suposto estuprador, na situação, detido exclusivamente por roubo.
Olhando a performance da moça, a considerei lastimável no exercício da profissão: postura de desdém, péssimo desenvolvimento da pauta, dispersa e desleixada na elaboração das questões, jocosa em sua expressão e linguagem, domínio da língua portuguesa sofrível e, sobretudo, impaciente e debochada na relação com as fontes. E não há dúvida quanto à gravidade da situação em que se postou, de desrespeito ao entrevistado e ao público.
Entretanto, entendo que estão transformando a moça "graduada em uma F qualquer" (imagine se nem diploma tivesse) em algoz de uma situação que vem há muito corroendo o jornalismo decente. E daí que ela é formada em uma "F"? Seu chefe, o apresentador Uziel Bueno é faconiano, formou-se na Faculdade de Comunicação da UFBA, prestigiadíssima, e está pautando sua vida profissional à frente de um programa de "conceito" questionável, popularesco e policialesco, desempenhando um papel tão triste quanto o de sua subordinada. Atrás de Mirella e Uziel há um sistema. Há um sindicato, há uma federação de profissionais, há uma equipe interna que "pensa" o que vai ao ar, há um editor, um diretor, um pauteiro, um coordenador de programação, um empresário dono da emissora, a OAB, o MP, os governos, o escambau. Todos cegos até aqui. Omissos.
Porque o que existe não é um problema da emissora, pontuado neste episódio. Não é um problema da Bahia e, não é puramente, um problema dos profissionais envolvidos na prática deste formato jornalístico. Embora, até a questão de racismo já tenha entrado no jogo dos argumentos, sem o menor cabimento, na minha opinião. O contexto é aquele, seja o meliante azul, preto, amarelo ou vermelho. Essa terra não acaba nunca com essa síndrome. E se ela fosse negra e não loira? Se recusaria a fazer tal papel?
E, também, muito menos é um problema da audiência. Sobre os telespectadores, inclusive, o mínimo que li foi: "pobre gosta é disso". Vejam só. A culpa do descalabro da atividade jornalística, principalmente na área televisiva se resume, neste momento, a Mirella, a loira, e aos pobres da Bahia, que assistem e gostam do programa que ela ajuda a fazer. E agora a repórter acaba de receber uma representação do Ministério Público, além de uma repreensão que fatalmente descambará em sua demissão da Band-BA. Tá certo. Alguém vai pagar o pato. Por que uma profissional como ela foi contratada? Por que foi mantida se, mais cedo ou mais tarde, seria um mau exemplo?
Por muito menos já vi profissionais competentes em redações de verdade serem demitidos sumariamente. Simples: porque é exatamente o jeito de se portar da moça que atende aos objetivos do programa e, portanto, ao sistema onde o que menos importa é o cumprimento das leis, a responsabilidade com o código de ética, a preservação da moral, o compromisso com a verdade e a competência no exercício profissional.
E essa mobilização toda que personaliza a questão e joga pedra com tanta veemência, vai continuar para resgatar a dignidade da profissão, cuja sorte começa pelas faculdades que assinam embaixo dos diplomas desqualificados? Nas redações que contratam estagiários sem-noção em vez de profissionais treinados, com repertório, bom senso e experiência? Ao contrário, os demitem. Nas políticas públicas de comunicação e informação, além de entidades afins, que devem educar e punir quando a ética é jogada no esgoto em nome da garantia da atenção e audiência? Nas entidades classistas imóveis e retardatárias, que só gritam depois que a opinião pública se manifesta, principalmente através das redes sociais? Ou Mirella vai virar o "exemplo", ser banida da profissão, enquanto a caravana passa?

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